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Um dia a ponte caíu

sexta-feira, 16 de maio de 2008 às 14:13

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caíu pá, e agora?



E começámos a descer, tentando cortar aquela nuvem de pessoas.

Descemos dali, empoleirados naquele inferno estanque, deixando para trás aquela lágrima de pessoas que agora, mais do que nunca, insistia em verter o seu sal no enlameado Tejo.

Famílias inteiras reuniam-se ali, pessoas frágeis que se havia despedaçado naquela manhã e que em silêncio, por dentro, escolhiam experimentar aquele ardor nos olhos, como se fosse a primeira vez na vida, sem cuidados ou espécies de etiquetas, tornadas despojos de guerra, assistindo à distância de uma nesga de vento.

Acotovelavam-nos quando tentávamos sair dali. O rio parecia ter galgado o cais e inundado o largo de Cacilhas com milhares das suas gotas. E mais se aproximavam ao longe.

E chovia, começava a chover. Uma brisa leve trazia todo aquele vapor até nós, encharcando tudo, até às entranhas, naquele piscar de olhos.

Não era fácil atravessar. Mães de poucos anos choravam pelos recentes maridos que decerto já teriam iniciado a labuta diária, deixando-as com o miúdo de um dia para criar, sem aviso; e outros gritavam euforicamente, como se tivessem perdido os sentidos e encarnado outro espírito, decepcionado em convulsões furiosas que lhes tomava o corpo.

Naquilo, uma mulher permanecia calma, ali, diante de nós, bloqueando-nos a passagem com os olhos perdidos nalgum sonho distante, segurando um lenço vermelho, trapo enrugado entre as mãos, detida, sem se importar com a água que lhe escorria para o canto da boca, imóvel, de cabelos escuros, talvez pretos, que lhe caíam dos ombros para as mãos cruzadas em sinal, reza sagrada.

Torcia os dedos com força, procurando a gentil força superior que a havia abandonado, frágil e sozinha, fitando a vida engolida pelo Tejo furioso. E caía, brusca, de joelhos despedaçados em estilhaços mil, vidro, espelho da alma esmagada pelo sentimento fulminante das recordações - da sua família suponho - destruídas naquela manhã, perpétuo momento, e para o resto da sua vida aquela chuva iria insistir, cair.

Tentávamos atravessar aquele delírio de dor, caminhando contra a maré daquela multidão. Era tempo de recomeçar, bastava de sal nas nossas chagas.


* Lamento, sei que está curto, para a próxima sai a dobrar *


J

Um dia, a ponte caíu.

domingo, 27 de abril de 2008 às 18:49

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Doente na doença de estar doente,
de sentir os dentes crescer para além dos dedos,
a mastigar lentamente as palavras que preenchem o nada,
que nada preenchem.


caíu pá, e agora?



O velho mantinha-se calmo, olhando para cima, para eles os dois, disse grave - "Foi-se".

As ondas quebravam-se no embate com o cais, calmas, não mais que um metro de espuma quando se erguiam do Tejo azul esverdeado. Era um vaivém pacífico que se entendia com o burburinho das multidões suspensas nos murmúrios e gritos, de soluços nos olhos que procuravam algo que já lá não estava. Por cima de nós, o céu esbracejava um suspiro, quando o sol nos mirava por entre as nuvens, tímido, talvez única testemunha do que se tinha passado, rasgado pelas trevas daquele claro dia.

Via os helicópteros a chegar, vindos por detrás de nós, a pairar velozmente em direcção a lado nenhum, algures, esbatidos no horizonte, onde paravam em círculos, manobrando as gigantescas colunas de vapor de água e de fumo negro que serpenteavam os céus.

Conseguia ver alguns barcos de pescadores a partir da Trafaria, lá longe, pelo canto do olho, na minha esquerda, em direcção ao rio que engolira Lisboa, talvez na heróica missão de tentar salvar quem conseguissem, ou na eterna curiosidade mórbida dos portugueses de provocar mais acidentes observando roadkills na estrada - aposto que levavam cestos de piquenique naqueles barcos minúsculos.

Fiquei nisto largas horas feitas minutos, talvez segundos, estático. E foi quando senti a forte aragem quente que soprava no meu pescoço que caí de joelhos, a vomitar os pulmões que não conseguiam já respirar, pelos dentes que rangiam, e as veias que empurravam os olhos para fora das órbitas. Sentia todos os músculos do meu corpo a tremer, de dentro para fora.

E foi quando o Zé me disse "Olha, levanta-te caralho, olha!".

E as nuvens que pintavam o horizonte haviam diminuido, e diante de nós, apenas Tejo nos saudava, reflectindo faíscas de luz do sol nos olhos, numa pintura renascentista, virginal. A multidão por detrás de nós uivava, louca e desesperada.

Tentei semi-cerrar os olhos, sabem, quando se tenta ver até mais além, como se tivessemos super-poderes de heróis em pijama e capa, e conseguia destinguir uma sombra longe, que delíneava o horizonte, sem conseguir destinguir o que era. De facto, quanto mais tempo ali passássemos, menos iríamos perceber aquilo que se estava a passar.

- Preciso do teu carro Zé, preciso de ver o que está do outro lado.
- Está doido? - retorquiu, a esbracejar os braços - Onde é que pensas que vais chegar com esta confusão toda? - a apontar para o outro lado do rio - Pensas que és o único a pensar nisso? As estradas devem estar ou cortadas ou entupidas de carros!
- Até o mais longe que conseguir, só quero tentar perceber o que se passa, se estamos a ser atacados ou se foi outra merda qualquer.

Ele não sabia se me havia de levar a sério. Ficou ali pensativo, rodando nos calcanhares, alternando entre o outro lado do rio e comigo, que me levantava devagar, assoando os lábios às palmas das mãos. Fitou-me nos olhos.

- Leva-o. Mas promete-me que mo devolves inteiro.

E começámos a descer, tentando cortar aquela nuvem de pessoas.


*A continuar, mais tarde, após edição revista e aumentada.*


J

Um dia, a ponte caíu.

domingo, 23 de março de 2008 às 17:12

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caíu pá, e agora?

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Eram horas de saír.

Agarrou no seu casaco gasto nos cotovelos, de cor neutra, castanho talvez, e fez-se à porta, hesita.. hesita.. claro, faltava a mala, um recuo rápido, e lá estava ela encostada ao largo sofá. "Está tudo", abraçou o gatilho que o separava do mundo exterior e puxou-o, quando uma abafada voz soou do quarto:
- Zé... onde vais zé?
- Até Lisboa, não esperes por mim - retorquiu, seco.

A porta deslizou na sua direcção e saiu. Aquele pátio cheirava a carne enlatada em notícias já com o prazo de validade expirado, paredes caiadas com nomes de tribos urbanas, daquelas que não existem. Flashes de luz cegavam-lhe os olhos - o café a fazer efeito - e tropeçava com os dedos nos botões do elevador - vá lá vá lá - com aquela dança frenética com os olhos fixos no tecto, de forma a dobrar o tempo ao nosso ritmo.

O Zé era um porreiro, sério.

O sol já lhe afugentava as dúvidas de que estava acordado quando reparou nas ruas pilhadas de gente - não se via vivalma, nem carros a passar ou a buzinar ao longe. Mais ao fundo da rua, o largo de Gil Vicente encontrava-se na mesma, estaleiro de obras, roubado da sua fonte e estranhamente, das suas gentes. Carros estavam estacionados na estrada, de portas abertas, abandonados ali, sem destino, e ouviam-se pessoas a berrar a plenos pulmões, sem se conseguir perceber o que queriam dizer. A avenida subia e descia num silêncio frágil, quebrado muitas vezes por vozes que lamentavam e outras que festejavam.

Recuei um pouco naquela névoa, era tudo muito confuso - há que tentar pensar um pouco - quando reparei na tasca da fonte com uma palma de gente à porta a tentar entrar. Aproximei-me um pouco e vi o Zé, amigo de longa data desta e de outras vidas, semi-esmagado naquela manada humana. Tentei chamá-lo em vão, o ruído era demasiado. Não conseguia perceber o que se passava dentro do café, escapavam-se apenas diálogos perdidos e dedos apontados à televisão que continuava a passar imagens daquele filme que ia estrear. Tentei chamar o Zé novamente, tive que empurrar as carnes que limitavam a entrada da tasca a pouco mais que uma nesga de gente.
- Zé, o que é que se passa amigo? - e nada, não me conseguia ouvir apesar de estar a menos de dois metros de mim. Tentei novamente - ZÉ, OPÁ, Ó ZÉ - e ele olhou para trás, tinha a cara distorcida, agitada - PEDRO, JÁ SABES? - que raio, como é que eu podia saber, acenei que não com a cabeça. A custo, saímos os dois.
- Zé então, o qu'é que se passa?
- Anda, eu mostro-te - disse ele, puxando-me o braço e apontando para a avenida que descia até Cacilhas - é melhor descermos pela rua dos antigos bombeiros, há demasiada confusão por aqui - e virámos para a rua dos antigos bombeiros, que desce até Cacilhas, passando pelo movimento Libertário e pelas antiquíssimas tascas de mariscos e outros acepipes.

Cacilhas era o caos, já desde o desvio nos bombeiros que se percebia que devia estar ali a população de Almada em peso. Ele puxava o Pedro pelo braço enquanto desciam ambos, tentando manobrar por entre as caras despedaçadas que se cruzavam por eles. Velhos gritavam das varandas - "É bem feita! Agora pagam por aquilo que fizeram ao resto do país! Filhos da puta!" - naquela rua esguia que terminava junto às gares de camionetas em Cacilhas. Havia ali também um silêncio dominante, apesar das torrentes de pessoas que inundavam os passeios e dos carros estacionados, muitos deles ainda a funcionar, abandonados onde pararam, e das vozes exasperadas e exaltadas, o silêncio amargurava todo o ambiente, como um mau actor numa obra prima de teatro.

O Zé e o Pedro continuavam a descer, e via-se bem na expressão do Pedro que não sabia o que fazer daquilo, a tentar raciocinar em fórmulas matemáticas de expressões sociais para aquilo que via, enquanto que o Zé continuava a guiar-lhe o caminho, a tentar chegar às grades daquela plateia monstruosa, espectáculo mórbido.

Pessoas caíam à sua passagem, umas desmaiadas outras que simplesmente perdiam a força nas pernas e se desfaziam em lágrimas. Um velho na multidão, de barbas brancas, a lembrar um velho comunista, de gabardina comprida, de feltro preto, a fumar um cigarro sem filtro de dedos castanhos, queimados do tabaco, projectava a sua corcunda por detrás de uma nuvem que se estendia no horizonte. Zé e Pedro aproximaram-se, treparam para cima da estação fluvial e foi aí que o Pedro se fez estátua. O sangue simplesmente parara de correr nas suas veias.

Os F16 sobrevoavam as suas cabeças a alta velocidade, rasgando os céus para uma nova paisagem, vazia. Lisboa não estava lá. Apenas nuvens largas de fumo e outras de vapor de água se levantavam à sua frente. Um silêncio perturbador e uma vibração quase mecânica pintavam os sentidos.

O velho mantinha-se calmo, olhando para cima, para eles os dois, disse grave - "Foi-se".



*A continuar, mais tarde, após edição revista e aumentada.*


J

Um dia, a ponte caíu.

domingo, 16 de março de 2008 às 18:38

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caíu pá, e agora?

Sentado na cama, contemplava as memórias da noite passada, sonhos ceifados em abraços cerrados, de olhos fechados, a caridade da sua sombra projectada pela única luz que conhece. Um de nós mente com todos os dentes.

Um passo em falso, os pés que se arrastam, à procura de um chão que o suporte. Passa a mão pela testa, limpar o suór frio deixado pela noite passada em horas solitárias. Ergue-se, levanta-se com os braços apoiados nos lençóis ox blood, alma carmin que abandona dormente. Passos lentos, desajeitados carregam os seus ossos até à casa de banho para a inspecção matinal. Grunhido fácil, esperado, que ecoa nos reflexos dos azulejos verde escuro do chão, trinta na horizontal, e cinquenta na vertical, os mesmos de ontem. A luz do tecto treme frágil e ele agarrava a cabeça, para se certificar que ainda a tinha. Nada como um vislumbre da nossa face pela manhã para sermos chamados de volta à realidade - a inspecção rápida dos dentes, de um cão sem pedigree - "bom dia para ti também". Amarelos pois, água na tromba e um arrepiar de revolta.

Passeio rápido até à cozinha, aquecer um café, ligar a tv, fingir que há um sentido na vida. Repetir estes passos até à exaustão, dia após semana, após eternidades gastas, os despojos da esperança, para quê? Acabar num qualquer banco de jardim a mirar as miúdas de 16 anos 18 anos, a reclamar que está frio, e que não chove, e que está calor, e o diabo a sete.

Café de filtro, cheio de borras que se agarram aos dentes, sujo quasi pestilento, o Café - o melhor momento do dia.

Ecoava na televisão um novo filme que estreava naquele dia. Imagens de um cenário de guerra - mais um filme pós 11 de Setembro, pós filmes sobre o 11 de Setembro certamente - o nacionalismo americano exacerbado ao nível da Deutschland Uber Alles de Hitler. Não lhe interessava. Sentou-se, cansado, numa conversa com o cigarro que habilmente já descansava sobre os seus dedos - o término desta cerimónia matinal.

Os olhos divagavam pelas paredes despidas, brancas - amarelas do fumo, à procura de um ponto, uma razão que o obrigasse a acordar. O Diário Remendado do LP descansava no sofá, velho e gasto, torto de anos de uso e das amantes que não lhe tinham sobrevivido, junto da garrafa de tinto que tinha consumido na noite anterior. E foi aí que tudo se alterou.

O silêncio.

Pela primeira vez em anos, desde que se mudara para aquela casa gigantesca, um Tê Zero feito castelo em Almada, cujos canos rangiam e pingavam, que reparou no silêncio. Não havia vizinhos a foder, nem elevadores a carregar corpos a caminho do trabalho, nem miúdos da escola ao lado a brincar. Até o ronronar metálico, distante, da ponte Abril de 25, se mantinha silencioso. Seria Sábado? Feriado? Teria o mundo acabado?

Fitou o tempo distante mais um instante, de olhos cravados no horizonte trancado por detrás daquela janela fechada.

Eram horas de saír.


*A continuar, mais tarde, com dois ouvidos, após edição revista e aumentada.*


J