Colecciono pedaços de mim em frascos de vidro fusco, numa sala fumarenta com chão de carvalho, rodeado de papéis velhos, cartas — umas abertas, outras por abrir, recortes de jornal e postais que fui recebendo ao longo do tempo.
Oiço na minha cabeça um duo de saxofone e contra-baixo. Marcam o ritmo dos meus movimentos enquanto verifico se o frasco está limpo, à lupa, e escrevo a etiqueta (esta diz "1974"), passando o mata-borrão e, no verso, uma solução ou mistura de água com cola de madeira, ensinada pelo meu pai quando encadernava os recortes e fotocópias recolhidos minuciosamente, como se fosse o curador da história.
Não era.
E eu limito-me a coleccionar os meus pedaços.
O ar bafiento havia tornado a minha pele num amarelo macilento, enrugada, seca. Entorpecia-me a vista, subjugava-me em corcunda, velho, torto, gasto, feições meio desfiguradas, meio cadavéricas.
Nos dias com mais vento sentia por vezes vozes em surdina a soprarem-me na nuca através da janela de portadas cerradas que ocultava esta azáfama lenta e exacta. A sua sombra recortava-se pelas frestas de luz à altura e largura da janela, por cima dos meus ombros, bem longe do lá fora, do há-de e podia ser, quando já o era.
Raramente me levantava do velho cadeirão forrado a veludo verde (agora roto e queimado pelas cinzas dos cigarros). Por vezes parava, recostava-me enquanto respirava o fumo e demorava-me a fitar os dois quadros pendurados na parede, com imagens de pessoas das quais não me recordo dos nomes,
Sombras sem asas
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