As manhãs sucedem-se

terça-feira, 13 de agosto de 2013 às 23:27


I


Havia sempre algo que restava na mesa, um pouco de mim ali ficava, esquecido entre as frases trocadas à refeição, no tilintar dos talhers usados com avidez, à gula da vida levada em pedaços mínimos fatiados com delicadeza e etiqueta. Eram banquetes à deriva, digo. A mesa continuava a flutuar nas vagas do lago, sacudido pelo vento que havia arrancado o telhado à casa, e a chuva amaldiçoava-me os ossos e estalava-os

— e pelo canto do olho continuava a observar-te, de dedos curiosos a esticarem as feridas abertas, a romperem os fios das cicatrizes, e deixava-te olhar para dentro enquanto me tiravas as medidas e as guardavas nos frascos coleccionados durante as tuas psicoses ou paixonetas sobre rapazolas, e dava-te a mão, apertava-te a mão.

Esta tempestade era diferente. O assobio do vento não me amedrontava, e o lodo levantado do fundo da água pela turbulência quase que me abraçava. Não, não tinha medo. Os relâmpagos mantinham-me acordado, a alma sobrevivia quando a cabeça já não conseguia. A sala era nosso navio e os mortos continuavam a bordo, mudos na sua inocência, eles também sobreviventes, baixando os olhos com o passar do cortejo.

— diz, por favor, diz ao miúdo que já pode sair de debaixo da mesa, as visitas já há muito que se foram embora e o tempo não lhe vale o esforço. Diz-lhe das flores. Sim, conta-lhe das flores mas não o pressiones. Atira-lhe porquês e guarda os porque-sims. Dá-lhe asas, ele conhece o caminho.

Há poucos sítios onde gostaria mais de estar. Tenho um prato vazio mas não tenho fome, e os pés já não os vejo por debaixo da água negra. Os cotovelos continuam apoiados na mesa, mão direita num copo por encher, a esquerda vai marcando o ritmo daquela música. Os meus bolsos enchem-se de água e ainda não encontrei o que de mim ali ficava...

— quando nadares até à terra com os teus frascos não te esqueças de os etiquetar bem.




II


As manhãs sucedem-se aos pecados
e a minha vista esquerda sucumbe, desaparece entre as gargalhadas
normais.

Não te enganes
— este amor morre comigo
não é para guardar em caixas
coleccionar em frascos
etiquetar e constar em inventários.

DEIXA. Quando passeava pelas ruas
reconhecia as janelas
imaginava-lhes reflexos, histórias
paixões acesas pelos meandros das palavras
amores arrancados às necessidades das carnes
filhos perdidos nas memórias dos pais
irmãos órfãos de irmãos
lágrimas derramadas em rezas a deus e à virgem santa.

Levava à boca palavras
sem estas terem sido inventadas ou pensadas
em bicos dos pés, junto aos telhados da cidade,
— tomava-as como minhas
esborratadas sobre os lábios de puta
de noites recortadas em suspiros.

É a única desculpa para a vida.




III


Quando me for e ouvires os meus passos arrastarem lá fora, junto à da tua janela,
não ligues — é porque levo comigo o peso da lua
num pequeno soluçar azul,
e deixa que o turpor da noite te leve em sono novamente
para dentro das feridas e das dúvidas e da dor
- mas por favor, se me deter à porta da tua casa não acuses o meu nome
os mortos não sabem ler
e as lápides esmagam-lhes o peito, impedindo-os de respirar.






J

Enviar um comentário