Um dia, a ponte caíu.

domingo, 23 de março de 2008 às 17:12

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caíu pá, e agora?

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Eram horas de saír.

Agarrou no seu casaco gasto nos cotovelos, de cor neutra, castanho talvez, e fez-se à porta, hesita.. hesita.. claro, faltava a mala, um recuo rápido, e lá estava ela encostada ao largo sofá. "Está tudo", abraçou o gatilho que o separava do mundo exterior e puxou-o, quando uma abafada voz soou do quarto:
- Zé... onde vais zé?
- Até Lisboa, não esperes por mim - retorquiu, seco.

A porta deslizou na sua direcção e saiu. Aquele pátio cheirava a carne enlatada em notícias já com o prazo de validade expirado, paredes caiadas com nomes de tribos urbanas, daquelas que não existem. Flashes de luz cegavam-lhe os olhos - o café a fazer efeito - e tropeçava com os dedos nos botões do elevador - vá lá vá lá - com aquela dança frenética com os olhos fixos no tecto, de forma a dobrar o tempo ao nosso ritmo.

O Zé era um porreiro, sério.

O sol já lhe afugentava as dúvidas de que estava acordado quando reparou nas ruas pilhadas de gente - não se via vivalma, nem carros a passar ou a buzinar ao longe. Mais ao fundo da rua, o largo de Gil Vicente encontrava-se na mesma, estaleiro de obras, roubado da sua fonte e estranhamente, das suas gentes. Carros estavam estacionados na estrada, de portas abertas, abandonados ali, sem destino, e ouviam-se pessoas a berrar a plenos pulmões, sem se conseguir perceber o que queriam dizer. A avenida subia e descia num silêncio frágil, quebrado muitas vezes por vozes que lamentavam e outras que festejavam.

Recuei um pouco naquela névoa, era tudo muito confuso - há que tentar pensar um pouco - quando reparei na tasca da fonte com uma palma de gente à porta a tentar entrar. Aproximei-me um pouco e vi o Zé, amigo de longa data desta e de outras vidas, semi-esmagado naquela manada humana. Tentei chamá-lo em vão, o ruído era demasiado. Não conseguia perceber o que se passava dentro do café, escapavam-se apenas diálogos perdidos e dedos apontados à televisão que continuava a passar imagens daquele filme que ia estrear. Tentei chamar o Zé novamente, tive que empurrar as carnes que limitavam a entrada da tasca a pouco mais que uma nesga de gente.
- Zé, o que é que se passa amigo? - e nada, não me conseguia ouvir apesar de estar a menos de dois metros de mim. Tentei novamente - ZÉ, OPÁ, Ó ZÉ - e ele olhou para trás, tinha a cara distorcida, agitada - PEDRO, JÁ SABES? - que raio, como é que eu podia saber, acenei que não com a cabeça. A custo, saímos os dois.
- Zé então, o qu'é que se passa?
- Anda, eu mostro-te - disse ele, puxando-me o braço e apontando para a avenida que descia até Cacilhas - é melhor descermos pela rua dos antigos bombeiros, há demasiada confusão por aqui - e virámos para a rua dos antigos bombeiros, que desce até Cacilhas, passando pelo movimento Libertário e pelas antiquíssimas tascas de mariscos e outros acepipes.

Cacilhas era o caos, já desde o desvio nos bombeiros que se percebia que devia estar ali a população de Almada em peso. Ele puxava o Pedro pelo braço enquanto desciam ambos, tentando manobrar por entre as caras despedaçadas que se cruzavam por eles. Velhos gritavam das varandas - "É bem feita! Agora pagam por aquilo que fizeram ao resto do país! Filhos da puta!" - naquela rua esguia que terminava junto às gares de camionetas em Cacilhas. Havia ali também um silêncio dominante, apesar das torrentes de pessoas que inundavam os passeios e dos carros estacionados, muitos deles ainda a funcionar, abandonados onde pararam, e das vozes exasperadas e exaltadas, o silêncio amargurava todo o ambiente, como um mau actor numa obra prima de teatro.

O Zé e o Pedro continuavam a descer, e via-se bem na expressão do Pedro que não sabia o que fazer daquilo, a tentar raciocinar em fórmulas matemáticas de expressões sociais para aquilo que via, enquanto que o Zé continuava a guiar-lhe o caminho, a tentar chegar às grades daquela plateia monstruosa, espectáculo mórbido.

Pessoas caíam à sua passagem, umas desmaiadas outras que simplesmente perdiam a força nas pernas e se desfaziam em lágrimas. Um velho na multidão, de barbas brancas, a lembrar um velho comunista, de gabardina comprida, de feltro preto, a fumar um cigarro sem filtro de dedos castanhos, queimados do tabaco, projectava a sua corcunda por detrás de uma nuvem que se estendia no horizonte. Zé e Pedro aproximaram-se, treparam para cima da estação fluvial e foi aí que o Pedro se fez estátua. O sangue simplesmente parara de correr nas suas veias.

Os F16 sobrevoavam as suas cabeças a alta velocidade, rasgando os céus para uma nova paisagem, vazia. Lisboa não estava lá. Apenas nuvens largas de fumo e outras de vapor de água se levantavam à sua frente. Um silêncio perturbador e uma vibração quase mecânica pintavam os sentidos.

O velho mantinha-se calmo, olhando para cima, para eles os dois, disse grave - "Foi-se".



*A continuar, mais tarde, após edição revista e aumentada.*


J

2 Comentários:

Muito produtivo o fim-de-semana de escrita, J!

Estou a gostar desta história e fico com vontade de ler a continuação...

Isto agora com dois ouvidos é outra coisa :)


J


PS: Se eu não te conhecesse melhor diria que estavas a ser simpática...

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