vinte-e-nove lugares vazios

sábado, 24 de maio de 2008 às 12:36

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vinte-e-nove

vamos retirar as raízes da terra,
movimentar o tronco da velha árvore,
leve inclinação para a frente,
espelhar a longa sombra de gigante tombado pela relva ocre,
deixar que o vento agite os galhos, sem a mínima consequência directa.

vamos deixar que os nossos pés dancem,
em bicos, apoiados nos dedos,
ao verem o caixão passar,
acorrentado aos vinte-e-nove cavalos brancos,
alimentados naquele circo pandemónio,
na breve chuva de verão que tinge o céu de sombras púrpuras,
de reis e imperadores caídos,
deitados por terra, sem raízes.

vamos entrar pela porta,
deixar as janelas e os outros atalhos para quem deles precisa.

vamos guiar até casa naquele carro vermelho,
movendo o sol e as estrelas para longe,
empurradas pelo caleidoscópio das línguas entornadas pela verdade,
em graças dadas pela igreja e pelo papa,
- olha como a lâmina se sente confortável nos meus ossos.

vamos deixar a economia de palavras para quem percebe de números,
escolhendo a facilidade das vãs promessas que são cumpridas,
escolhidas aleatoriamente pelas sílabas que descem pelo pescoço,
em gotas de mel colhidas gentilmente pelas mãos que te acariciam,
falsas, gastas, escondidas pela gentileza da vida que sopra em nós,
e a sobriedade que flutua pelo ar, suave, rangendo os dentes à nossa volta.

vamos buscar os nossos brinquedos, os de brincar e os outros,
para rasgar as feridas que jazem cruas na pele estaladiça e condimentada,
e fazer mil acepipes - fantásticos! - que nos alimentarão as bocas para sempre,
esperançados numa esperança melhor, algo melhor, de mais fácil digestão,
entregues ao rio de sangue que escorre pelo espaço que te sobeja entre dentes,
quando mordes o céu com todas as ganas que cresceram selvagens todo este tempo,
deixadas à vontade divina daqueles homens e mulheres que jogam à vida como deuses.

vamos dormir como se não houvesse amanhã porque amanhã é já daqui a bocado, e isso, é muito tempo.

vamos brindar à escuridão que nos envolve, a mítica e feroz viúva da morte,
aquela dama que se recusa, que não é dada, que tem de ser reconquistada todos os dias,
nos jogos de guerra criados para entretenimento da plateia ávida por mais,
mesmo quando nos restam vinte-e-nove lugares vazios.

vamos ouvir a orquestra do tempo que faz soar os tambores das tempestades,
sentir os calafrios na espinha quando a terra ruge por mais carne pútrida,
na doce melodia desesperada da vingança nascida nas rugas dos beijos deixados sós,
quando os rios se transformam em soldados ferozes de ideias puras,
comandados pela seda suave da pele que se consome frágil,
pelos vermes que irrompem em discursos de batalhas perdidas nas vinte-e-nove noites solitárias.

vamos abraçar o nosso esqueleto e dizer-lhe o quanto lamentamos.



J

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