A dona Miquelina é minha vizinha

terça-feira, 26 de junho de 2012 às 00:49


John Fahey - The Dance Of Death
A dona Miquelina é minha vizinha. Partilhamos a vista para a mesma rua do solarengo Chile, distraídos pelo chinfrim ensurdecedor das apressadas ambulâncias que seguem para o S. José, imunda Almirante Reis abaixo.

Todos os dias quando retorno a casa lá está ela do outro lado da rua, debruçada sobre os seus fartos seios, débil e frágil, com a cadeira de rodas encostada ao corrimão esguio de uma janela que havia ousado sonhar ser varanda. É o nosso reencontro. Abro as janelas e não preciso de acenar, sei que ela me observa e ela sabe que a olho com a mesma curiosidade de todos os dias.

O senhor Marcelino do andar abaixo do dela ainda espreita tímido com o seu farfalhudo bigode de jogador de futebol dos anos 80, entre as persianas, apenas retirando-se para as sombras da sua casa quando as duas meninas romenas lhe batem à porta da rua, todos os dias 27, todos os meses, não falha — as meninas lá aparecem nas suas mini-saias e tops de miúdas saídas do colégio, e cada uma com 40 anos bem gastos nas órbitas dos olhos que trazem penduradas nas testas frisadas e de cabelo ralo.

Acho que a dona Miquelina gosta de mim. Gosto de pensar que ela espera que chegue a casa para me dizer olá, mesmo apesar de nunca termos trocado palavras, acenos silenciosos ou constrangedores. Ela simplesmente está, ali  — ali me aguarda, todas as tardes, com o seu xaile viúva-preto e vestido coçado e roto de lide doméstica grisalho, como o cabelo encaracolado e oleoso, curto, que descai sobre a sua fronte em rebuliço até às gordas bochechas ainda rosáceas.

Sonho em escrever-lhe cartas de um amante passado "Querida Miquelina, é a tua memória que me mantém à tona de toda a desgraça humana rasgada pelo carpir das balas que atravessam a selva. É o voltar para os teus braços que me mantém lúcido, o nosso primeiro beijo atrás do coreto — ficaste tão corada que pensaste que o teu pai iria adivinhar o que tínhamos feito, lembras-te?, é o cheiro das tuas ancas quando se abriram para mim a primeira vez, é o teu olhar guloso de mim, impresso na minha memória, que me faz erguer todos os dias. Só desejo que esta maldita guerra acabe para te poder voltar a ver e conhecer o nosso filho. O meu amor é sempre o teu amor, J" que nunca retornou da guerra. Imaginar-lhe o olhar brilhar com as recordações da juventude apaixonada, do calor dos braços do homem que perdeu e dos outros todos que lhe seguiram, à consolação de um coração destroçado. Valente mulher, mãe solteira, moça simples

("ela é de Alfeizerão" ouvi dizer a dona Albertina que trata das frises, permanentes e colorações de todas as senhoras — mesmo das que têm maçã de Adão — do Chile e arredores, quando me apanhou no outro dia nas escadas "ah o senhor é professor do técnico eu sei eu sei, vi as suas alunas ali em baixo no outro dia a cantarem-lhe uma serenata", sem acreditar quando lhe disse que "não, não, sou um chato contabilista", bendita seja a sua alma e as drogas que os médicos lhe receitam para "os nervos, o meu marido é que me põe neste estado" — diz).

Outra vezes imagino-a nova e gorda e cheia de vida e rosada, de blusa branca desabotoada, debruçada sobre o varandim a estender a roupa, de mãos gastas de quem trabalha, com aquele ar sadio que só as meninas da terra têem, cheia de graça e virtude. Admito que fico eriçado a contemplar o olhar da Miquelina menina e moça.

A Miquelina e eu dançamos todos os dias quando chego a casa, especialmente nos dias de calor quando dispo a roupa e ando pela casa da mesma maneira de quando a minha mãe me trouxe ao mundo. Ela sabe que eu sei que ela sabe que fomos e seremos amantes noutras vidas e que estamos simplesmente à espera que a morte chegue com a sua misericórdia para nos voltarmos a amar, a morder a carne um do outro com a voraz ideia ou noção ou saudade do amor que só encontramos no peito de quem nos pinta estrelas nas pálpebras, em beijos roubados à noite, no medo de que o dia venha e rasgue o coração que gritamos com a boca.

A dona Miquelina é um fantasma que alguém pinta todos os dias defronte da minha janela. É um fantasma que desaparece quando fecho os olhos.


J


Sonhei com o meu avô, de olho branco e morto, a querer implodir, com uma mancha azul no centro, descaído e/ou descosido da face queimada por óleo que imprimiu o movimento centrífugo do líquido nas suas feições. via-lhe o crânio entre a pele queimada e a caveira sorria — branca branca branca — o movimento do seu corpo era rodeado por uma brisa que levantava folhas secas do chão, caí de joelhos e ele chamou-me "Zé, como está a tua namorada, a Andreia?". acordei e fiquei nisto, sem dormir, de olhos a perscrutar as sombras que os carros na rua iam desenhando nas paredes. Onde é que tu estavas pensei, ou senti que o número 38 se referia apenas às primaveras que me descreviam morto. Ainda não sei. Sinto saudades dele. E do meu pai. Vagas mas fortes saudades de ser chamado de "neto" ou "filho". Os mortos acordam-me dos sonhos e interrogo-me se querem que me junte a eles ou se são apenas avisos de que me irei juntar a eles em breve.

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