Recortes de papel

domingo, 23 de setembro de 2012 às 12:43

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...e foi à noite que procurei os teus olhos, enrolado no calor do meu corpo que se debatia com os lençóis na cama onde o tentavam sufocar, de mãos errantes tacteando o vazio absoluto, dividindo realidade e sonho com as palmas das mãos; a minha cama é embarcação à deriva num oceano cujo horizonte é revelado pelos flashes da tempestade, entre recifes que rasgam a espuma rubra, os cantos das sereias e os monstros marinhos alados com onze olhos encrustados, assombrado por fogos-fátuo; ou é simplesmente o meu corpo que se afunda no centro do quarto.

Sinto o desespero de estar acordado.

Quando o infinito é demasiado e se torna em nada, porque o sentimento de assombro é maior, porque o imenso sentimento de solidão é tudo, porque o ponto exacto onde o nosso ser se separa da carne, ossos, veias e artérias, esmagado pela tormenta, é eterno. Tudo o resto são vertigens. Tudo o que somos, toda a realidade se distorce nesse minúsculo ponto. O rufar dos trovões, o rugir dos tufões, as vagas que nos puxam para o fundo, o peso da água que nos rouba o ar dos pulmões; ou a morte ou o querer viver. Somos apenas um momento dentro de um suspiro que alguém desenhou quando fechou os olhos. Maldição de ser humano.

Não sinto o meu corpo cansado; a minha mente perde-se nas ordens que lhe deve dar.

Escorre-me suor atrás dos joelhos, tenho frio; o tecto forma uma abóbada com as fracas luzes da cidade que conseguem entrar pela janela, projectando memórias que nunca vivi. Imóvel; a cama teima ranger com o tremer involuntário das minhas mãos e pernas. Perco a consciência em convulsões abruptas, espasmos que me retiram a dor; o corpo contorce-se e esboça cadáveres entre os lençóis; sinto apenas o primeiro choque, como se todos os músculos que seguram o meu esqueleto se atirassem de um abismo em câmara lenta, um de cada vez, esticando todos os membros do meu corpo que ficam para trás em posições impossíveis; os ossos estalam; a boca morde; os olhos gritam; e quando termina sobra-me apenas o tempo em que encho o peito de uma só vez, a face coberta de vidros, a garganta rouca que engole o oxigénio; e recomeça; e espumo da boca; e todo eu sou a face do medo.

Perco a noção do tempo, de tempo, quando regresso a mim. Todo o corpo me dói, todo eu sou frágil, todos os ossos estalam. Recolho-me em mim mesmo.

Tento sentar-me, colocar os pés no chão. Tremo de frio. Os músculos retraem-se com violência; tento apoiar os cotovelos nos meus joelhos e amparar a cara com as mãos; choques atravessam-me a pele; luto comigo mesmo para deter o meu corpo que é sacudido em vagas de dor; grito com ele, deve-me obediência.

E todo o tempo se detém, os meus olhos abrem-se e respiro fundo, os espasmos cessam, fito o escuro e sinto-a no quarto. Fico sentado, mãos atrás das costas, braços esticados, lentamente a romper o torpor. Passam uns segundos, horas, talvez uma mão cheia de minutos. Ganho a coragem de me levantar. A minha mente regressa sem muita vontade ao meu corpo.

Quando me projecto para a frente, para me tentar erguer, colapso; tudo o que sou irrompe pelo chão; mero espectador; os meus braços agitam-se atravessados, desordenados; os dedos das mãos esticam; oiço-os a quebrarem, um a um; a minha cabeça pesa todo um universo; os dentes mordem a língua; sangue e saliva misturam-se nas frestas do chão de madeira; está quente; as minhas pernas dançam retorcidas, fora de tempo, embatendo contra as traves da cama; o meu peito dispara; a dor em mim ruge, a volátil presença da minha vida escapa-se e sei que é tempo; a visão desvia-se, turva, afunila-se ao centro, abismo negro, tudo o resto é um borrão desfocado. Perco os sentidos; adormeço numa metamorfose em estilhaços de vidro.


J

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