Vila Algarve — Moçambique

domingo, 16 de setembro de 2012 às 20:27


O meu pai escreveu este texto há já muitos anos atrás. Partilho-o aqui, na íntegra, palavra por palavra, sem medos de gente que já morreu e das verdades que tanta gente — como ele — guardou só para si.




Também nós portugueses, possuímos na nossa História de tortura e medo, uma Vila... no Chile de Pinochet era a Vila Grimaldi e no Portugal Colonialista de Salazar e Caetano era a Vila Algarve em Lourenço Marques, Moçambique.

E é necessário não esquecer.

A responsabilidade para com os nossos contemporâneos e as gerações vindouras força-nos a recorrer à memória, à materialização do passado. A memória condiciona os nossos actos presentes constituindo aprendizagem e experiência, assegurando assim a continuidade de um povo enquanto comunidade social e política.

Em Portugal, tal como no Chile, tem sido feito, muito lenta e subtilmente o branqueamento ou o olvido de momentos importantes da nossa história. E no entanto os povos necessitam recordar e conhecer os erros cometidos para que não se repitam.

Talvez outros "altos valores" se levantem para que se justifique o olvido, talvez as ideologias tenham morrido —, e a moral também.

Mas a PIDE existiu e torturou e seviciou e matou.

No dia 18 de Dezembro de 1961, tinha então 19 anos, fui preso pela PIDE e conheci então a Vila Algarve. No rés-do-chão muitas secretárias e agentes escrevendo à máquina e, num canto escondido, um pequeno compartimento com 11 ladrilhos de um lado e 18 de outro, e uma janela pequena que dava para um jardim, para as vivendas vizinhas na Av. Fernandes Tomaz. E não creio que os vizinhos da Vivenda Algarve não ouvissem os gritos de dor contida (porque cada grito era uma vitória da PIDE).

Aí comecei a conhecer a tortura da estátua sem dormir. Conheci a pancadaria, as toalhas encharcadas e enroladas, chicoteando-me. Os insultos à família, aos amigos, e a mim próprio, dos quais o menor não foi o de traidor à Pátria, anti-português, etc. Os calcanhares rebentaram pelo inchaço dos pés devido à acumulação de sangue por estar de pé. Mas também me deixavam sentar para comer. E também para me mimosearem com gotas de água quente e fria alternadamente na cabeça. Porque durante esses dias chegou ao conhecimento dos PIDES a confirmação da queda da GOA, a Índia Portuguesa, imaginem, o seu furor redobrou de intensidade.

Talvez porque quisessem passar um Natal em paz com as suas consciências, interromperam este período de interrogatório em 24 de Dezembro, véspera de Natal. Enviaram-me para uma cadeia da qual não recordo o nome (sei apenas que ficava próxima do Bairro Sommerchild).

Recordo: a Maria João Seixas que recentemente algures numa entrevista disse que não era uma mulher de coragem foi a primeira pessoa que me procurou na cadeia e enfrentou os guardas prisionais para que me entregassem 1 bolo (era dia de Natal) e algumas revistas. Mais tarde, observei no exterior da cadeia quem me procurava: o Fernando Carneiro (ex-jornalista de "A Capital", creio que agora funcionário do ICEP) e o Jorge Pais (já falecido); e o Sebastião "Cozinheiro", o Afonso Muxira, o Salomão Manjate e tantos outros, até que o privilégio de ter uma cela com vista para a rua me foi cortado por vias de novo interrogatório ou "visita" à Vila Algarve.

No dia 1 de Janeiro de 1962 recomeçaram as sevícias. Foram mais oito dias de tortura. Sem dormir. Com alucinações. Paredes que opavam. Que surgiam longínquas. Plenas de insectos. E pancada. Insultos. Traidor à Pátria. Simulacros de morte com uma pistola cujo percutir batia em seco. Pés inchados. Testículos quadruplicados de volume devido aos pontapés que me davam por detrás quando me encontravam no chão, enroscado sobre mim mesmo, na posição fetal. Durou oito dias este tormento.

Ainda em Janeiro, mas no fim do mês — não recordo a data — voltei a visitar a Vila Algarve. E tudo se repetiu. Mais oito dias. Cair no chão por sono, era punido com mais pancada. Encostar-me à parede, por cansaço, sono ou inconsciência, era punido com mais pancada. Cenas que se repetiam. O corpo já não me doía. Deixei de ouvir do ouvido esquerdo. Finalmente desistiram.

E que pretendia a PIDE obter com os seus interrogatórios?

Quem tinha sovado um informador (negro) deles no dia 16 de Dezembro. Fui eu, o Fevereiro e o Rui Nogar.

Quem me tinha escrito um discurso que pronunciei na Associação Africana em Novembro de 1961 em que advoguei a independência de Moçambique? Insistiam que tinha sido o José Craveirinha quando na realidade ninguém o escreveu... foi espontâneo.

Quem tinha escrito e divulgado vários panfletos na zona do porto de L.M. e na cidade de Carriço? Fui eu, Nogar, Jorge Pais, Fernando Cordeiro, Craveirinha.

Quem tinha "pinchado" o exterior e o interior do Liceu Salazar com palavras de ordem sobre a independência? Quem pertencia ao MODEMO (Movimento Democrático de Moçambique)? Qual a influência do Partido Comunista Português no Modemo? Que relações tinha eu com o MODEMO, o PCP e o COREMO (Comité Revolucionário de Moçambique)? Ainda não sei como me relacionaram com o COREMO pois éramos apenas 10 pessoas. Tínhamos assaltado (não matámos; apenas uma surra) duas patrulhas da PSP e roubado duas pistolas. E espalhado (poucos) panfletos em língua ronga na cidade de Carriço, que passei no copiógrafo do Cine-Clube de Lourenço Marques, do qual era sócio e colaborador com chave, o que me permitia acesso à noite.

Queriam saber as actividades políticas ou influências do MODEMO no Núcleo de Arte (de que era sócio) e no Cine Clube. Queriam saber quem me abrira as portas do jornal "A Voz de Moçambique" para que eu pudesse lá escrever. Queriam saber quem coordenava numa página no jornal "Notícias" escrita pela juventude denominada "O Despertar", sub-titulada "O Despertar da Juventude de Moçambique". Queriam saber, enfim, quais os meus contactos com o PCP e a Juventude Comunista quando ainda estava em Portugal.

Historiando um pouco, direi que o COREMO foi fundado por mim, pelo Cozinheiro Sebastião, por dois ex meus serventes, o Muvira e o Manjabe, ao qual se juntou depois um outro negro que trabalhava na Rádio Naval, natural de Manjacaze e que adoptou como pseudónimo. Tudo começou quando o meu patrão chamou preto ao cozinheiro Sebastião e ele respondeu: "Não me chame isso porque preto é carvão e carvão é uma coisa; eu não sou uma coisa, sou negro". Depois disso conversámos mais e avançámos. Depois da minha expulsão pouco mais sei. Que cresceu. Que se refugiou na então chamada Rodésia, hoje Zimbabwé. Não sei se conservou o núcleo original. Sei que mais tarde integrou a FRELIMO assim como outros movimentos; a FRELIMO era um aglutinador de vários partidos daí se chamar Frente de Libertação de Moçambique. Devido, porém, à demasiada sujeição da FRELIMO aos interesses soviéticos, a COREMO abandonou a frente; foi considerada traidora pela Frente mas a COREMO abriu uma nova zona de combate às tropas portuguesas na região de Tete enquanto a FRELIMO estava restrita ao Norte, província de Cabo Delgado. Quando estava na Bélgica em 1967, soube da morada deles, escrevi colocando-me ao dispor deles para o que fosse necessário, inclusive combater ou mesmo ser instrutor militar. Responderam-me com muita consideração mas objectavam que outros que não a direcção veriam mal um branco a combater ao lado deles, e que instrutores tinham chineses que eram suficientes. Mas que lhes podia ser útil na Europa para prestar apoio diplomático (de que estavam muito carenciados porque era enorme o peso da FRELIMO) e logístico (para auxiliar qualquer dirigente ou estudante de passagem pela Europa). Respondi imediatamente (duas vezes até) pedindo credenciais e notícias sobre o núcleo inicial e fiquei sem resposta. Hoje, ao que me consta, o COREMO não, ou pelo menos não concorreu às eleições que houve entretanto em Moçambique.

Finalmente recebi a visita de meus familiares. Não podia explicar-lhes a razão das crostas de feridas que tinha no rosto. Minha mãe, que em Novembro me tinha negado autorização para fumar, levou-me cigarros. Enquanto tive sinais de violência no corpo permaneci numa cela sozinho. Era grande a cela (4x4). Sabia que o Vergílio de Lemos estava também solitário na cela mas esta mais pequena (creio que 2x4). O Drº Agostinho Ilunga, que a polícia sul-africana prendeu em Durban a mando da PIDE, estava também solitário.

Depois (Fevereiro/Março de 1962), chegou uma grande vaga de prisioneiros naturais da região de Mocímboa da Praia, Palma, Montepuez, Ibo. Para resumir: de toda a região da etnia "muârm". Foram presos porque se juntaram na praia, a "coberto" de uma cerimónia religiosa maometana para festejarem a independência do então chamado Tanganica (creio que a 7 ou 9 de Dezembro de 1961). E, na prisão, se dormíamos quatro em cada cela de 4x4 metros, passámos a dormir 16, sem camas, no chão, sobre esteiras.

Com 16 pessoas na mesma cela era raro o dia em que um de nós não fizesse uma viagem até à Vila Algarve. O horror era o regresso quando víamos o estado físico e mental em que eles regressavam.

Ainda voltei mais vezes à Vila Algarve. Primeiro, para me obrigarem a assinar três depoimentos que eu teria feito durante os interrogatórios: ligavam-me ao José Craveirinha que me teria dado o discurso que espontaneamente pronunciara na Associação Africana; ligavam-me ao P.C.P. porque receberia ordens de Wagner Russel, ex-membro do Comité Central do P.C. então residente em Lourenço Marques, para imprimir certas directivas nas associações a que estava ligado ("Cine-Clube" e "Núcleo de Arte") e na página literária publicada no "Notícias", o "Despertar"; ligavam-me também ao Drº Almeida Santos (Oposição Democrática) por vias de uma entrevista que lhe fiz a propósito das eleições de Novembro de 1961 e da abolição do Estatuto do Indigenato que terá sido ou não publicada no jornal "República".

Recusei assinar qualquer um dos depoimentos. E houveram mais socos e pontapés. Mantive-me firme. Visitei outra vez a Vila Algarve para me encontrar com o meu advogado Drº Carlos Adrião Rodrigues. Era uma sala plena de sofás. Acolhedora. Repousante. Mas pouco ou nada falei com ele com receio de que estivessem à escuta. Ele é que pagou as despesas da conversação. Em resumo, disse-me que devido ao facto de estar preso há mais de 180 dias iria fazer um  "habeas corpus"; que era a única coisa possível.

Dias depois, nova visita à Vila Algarve. Agora ao 1º andar. Que luxo. Tapetes. Porcelanas. Que luxo. Fui informado com toda a delicadeza que o Srº Sub-Director queria falar comigo. Mandaram-me enterrar num sofá. Esperei um pouco. Entrei num gabinete amplo, atapetado e muitas janelas. Aperto de mão que me foi difícil recusar e difícil aceitar — estava estupefacto.

E então, com palavras melodiosas, cativantes, surgiu o convite para que eu aceitasse integrar o quadro de informadores da PIDE.

Que me pagariam bem. O dobro do meu salário.
Que me arranjariam uma história plausível para apresentar aos meus amigos.
Que mais ninguém, na PIDE, teria conhecimento que eu era informador.
Que me arranjaria um pseudónimo.
Que só assinaria os recibos do meu trabalho com o meu pseudónimo.
Que só me encontraria com ele.
Que...
Que...

Enfim, todas as garantias de que poderia trair os meus amigos, e trair-me a mim próprio com a maior segurança.

Quando o primeiro enunciado da conversa foi feito, respondi logo que não... "mas espere, deixe-me acabar".
— "Porque se não aceitar esta proposta irá ser expulso de Moçambique e será entregue em Lisboa ao Tribunal de Aplicação de Penas onde é condenado pelo menos a 3 anos."
— "Abandonará a sua família. Não gosta da sua família? Sei que gosta bastante da sua irmã."

Enfim. Como os factores pecuniários e da segurança não funcionaram, o Srº Sub-Director dedicou-se à mais reles e baixa chantagem emocional e afectiva.

Mantive a recusa e o "homenzinho" verdadeiramente agastado reenviou-me para a prisão para eu pensar e que só me dava 8 dias. Na prisão fiquei 1 semana na solitária: "talvez para pensar melhor", sem a presença dos outros presos.

Inevitável. Mais uma visita à Vila Algarve. Na mesma sala atapetada do andar superior mas não tive direito ao aperto de mão nem convite para me sentar.

— "A minha posição continua a mesma. A resposta é não."

Talvez não tenha sequer pronunciado a palavra não. As bofetadas impediram-me. Socos. Pontapés. Os tapetes amorteceram-me a queda. O Srº Sub-Director não delegava noutros a tarefa de me bater. O Srº Sub-Director que na primeira conversa se mostrara tão humanitário e tão preocupado com a situação em que ficaria a minha família, deixou cair a máscara com uma simples palavra: "NÃO".

Depois de mais uma sessão de pancadaria desta vez infligida pelo Srº Sub-Director, regressei à prisão e nunca mais voltei à Vila Algarve.

Umas semanas depois fui expulso de Moçambique com a assinatura do Comandante Sarmento Rodrigues. Ainda tentei fugir no aeroporto. Impossível. Estava algemado e corri meia dúzia de passos. Os PIDES que me transportaram ao avião da Força Aérea Portuguesa queriam que eu fosse algemado no avião. Impô-se, porém, veementemente o Oficial que comandava o avião. Fui excepcionalmente bem tratado pela tripulação do avião mas, durante a escala em Luanda, a PIDE esperava-me e lá fiquei nas suas instalações um pouco mais de 24 horas incomunicável. Embarquei em Luanda e o avião fez nova escala técnica na Ilha do Sal. Também ali a PIDE me esperava e queria prender-me enquanto o avião lá estivesse (2 horas pelo menos). O Comandante da Força Aérea mais uma vez intercedeu por mim respondendo, obstinado, aos PIDE de que eu não teria hipóteses de fugir de uma ilha.

Chegando a Lisboa, na António Maria Cardoso, limitaram-se a assinar um auto em que me fixava a residência ao Concelho de Almada. Afinal, a entrega ao Tribunal de Aplicação de Penas e posterior condenação de 3 anos de prisão revelou-se um "bluff" do Srº Sub-Director da Vila Algarve.

Desde 1962 portanto que não visitei a Vila Algarve. Milhares de outros o fizeram. Milhares de outros ali foram torturados. Milhares de outros ali perderam a sua condição humana. E foi em nome do Povo Português que o fizeram. E foi em nome do Povo Português que se torturou José Craveirinha que escolheu precisamente o Português para literariamente se exprimir.

A Vila Algarve é uma vivenda que certamente muitos moçambicanos não esquecerão.

Mas bom seria que a Vila Algarve e o que lá dentro se passou chegue ao conhecimento dos portugueses e não caia no esquecimento.


J. V. R.

4 Comentários:

Que pena tenho de não ter podido conhecer o teu Pai.
T

Sei de muitos adjectivos que caracterizam esse Homem, teu pai.


*

Um documento impressionante. Devia ser publicado.


Confirmo o comentário anterior, este texto é digno de ser publicado.
Ainda está por se fazer justiça em Portugal com essas aberrações humanas que constituíam a pide.

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