Às 8 da manhã ela já lá estava. Sentava-se num banco de madeira gasta na estação, na linha dois, onde chegavam os comboios vindos de Lisboa e deixava-se ali ficar, o dia inteiro, até passar a ligação das 20h - que era o último a chegar da capital. Sempre que entrava na estação cumprimentava-me com um sorriso e um aceno de cabeça.
Quando caminhava mexia os lábios mas não falava, parecia cantar mas não fazia som. Tentava ler-lhe o rosto mas não vestia nenhuma expressão, sem tristeza ou preocupação, alegria ou contentamento. Parecia-me apenas convicta do que a levava ali, àquele local, dia após dia - todos os dias. Era uma mulher tão bonita… de rosto esguio e contornos femininos, sempre muito elegante, de ombros atirados para trás, costas direitas, pernas altas… era ainda uma mulher nova, mas também mais velha que o tempo.
Eu ficava no meu gabinete de chefe de estação e via-a atravessar as linhas, arrastando a sua longa saia negra pelos carris, resoluta, agarrada a um papel amarrotado que me parecia ser o mesmo todos os dias. Vestia-se de preto, saia larga, camisa preta, sapatos pretos já gastos, e um lenço, também preto. Sentava-se cuidadosamente, dobrando os joelhos e inclinando-se para a frente, sem lançar o corpo para a madeira do banco, repousando-o apenas.
Continuava nas minhas tarefas diárias — a carimbar papelada, verificando os horários e transmitindo para os apeadeiros seguintes os respectivos atrasos dos comboios que passavam. De quando em vez olhava lá para fora e via-a tranquila, atenta nos seus bordados como se desfiasse os dias na linha que lhe encruzilhava os dedos.
Só interrompia a sua pose sempre que eu anunciava na estação a chegada de um comboio vindo de Lisboa. Deixava cair para o seu colo os punhos, com as suas rendas e via-a esticar o pescoço, espreitando primeiro as cancelas ao fundo da linha fecharem, e quando o comboio se apresentava no horizonte, com o apito que se ouvia no resto da aldeia, levantava-se, atirando com as linhas para o saco e juntava as mãos - parecia que esperava alguém. Ficava atenta, vendo os passageiros descerem das carruagens, a recolherem as suas bagagens. E quando terminava o frenesim e se ouvia o eco do apito do comboio novamente, sentava-se, sem mudar de expressão, e continuava a desfiar o dia, com as suas malhas e rendilhados.
Uma desses dias comentei a história da Miquelina com a minha mulher, à mesa durante o jantar, expliquei-lhe o curioso da situação, da menina que se veste de viúva e que segue para a estação todos os dias.
— E fica ali, hora após hora. Vai comendo uma maçãs de vez em quando. Outras vezes reparo que fita o céu e murmura algo, embora eu não consiga perceber o quê.
— Ó António… a Miquelina está à espera que o marido regresse da guerra…
— Mas o Vasco não tinha já chegado? Há uns 3 meses ou que foi?
— Parece que sim. Mas a Miquelina uma vez no mercado, umas semanas depois dele ter chegado, começou a chorar e em pranto berrava "ele não é o meu marido! ele não é o meu marido! o homem que voltou da guerra não é o meu marido!"…
E todos os dias a Miquelina sentava-se na estação, com as suas malhas e rendilhados, desfiando os dias, como se os pudesse desfazer e ordenar…
—
pra escrever como deve ser noutro dia.
J
A Viúva
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