A Alice era uma menina que passava a vida a brincar com lagartas e gatos. Organizava festas de chá e atirava ovos contra o muro do vizinho. Rodopiava pelas folhas de outono e roubava tabaco ao pai, fumando cachimbo às escondidas. Às terças-feiras organizava corridas — usava o velho relógio de bolso do avô que havia roubado à sua mãe para cronometrar as suas passadas e desatava-se em pressas de chegar a lugar nenhum.
Um dia, ao voltar para casa ajudou a menina Ofélia (a octogenária ceguinha que vivia do outro lado da rua) a subir os degraus que a separavam da sua porta de casa. “Obrigado minha querida — és a Alice não és?” disse, amparada no conforto daquelas pequenas mãos que a guiavam “és tão bonita por dentro minha querida, muito obrigado”, e fechou a porta sem que a Alice tivesse tempo de lhe perguntar “por dentro?”.
É. Alice ficou a pensar nisso. Como é que a menina Ofélia conhecia o aspecto das suas entranhas? “Será que alguém me virou do avesso durante o sono e espreitou cá pra dentro?” Seria a Ofélia uma espécie de bruxa que apesar de cega, conseguia ver as pessoas por dentro? Os segredos e mentiras que carregavam consigo?
Intrigada, frustrada até por não saber as respostas a tanta pergunta, Alice decidiu fazer uma experiência: naquela noite, antes da visita que o tio costumava fazer até ao seu quarto, Alice arranca o seu olho esquerdo e engole-o. Queria muito descobrir como era por dentro, se seria realmente bonita. Queria ver o que Ofélia havia visto.
Rapidamente se arrependeu.
Logo no esófago, conseguiu vislumbrar pela primeira vez o seu interior — e não era bonito. Ali, escondido entre as artérias e músculos que lhe apertavam a garganta, encontrou o seu coração, cansado e gasto — havia tentado fugir-lhe pela boca.
—
J
O tio da Alice
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